Muito além dos "bons drink", Luísa Marilac tem uma história de vida impressionante, com detalhes tão surreais que seria quase impossível descrever tudo neste depoimento. São abusos sexuais, prostituição, violência e descaso com uma travesti que representa uma classe marginalizada da sociedade. Por este motivo, ela decidiu narrar sua história em 196 páginas de uma autobiografia em parceria com a escritora Nana Queiroz
"Nasci em Além Paraíba, no estado de Minas Gerais, uma cidade que hoje em dia tem só 35 mil habitantes. Eu era tão pequenininha, que minha família me colocou o apelido de Pingo porque eu cabia em uma caixinha de sapatos. Sempre tive a tendência de ser uma menina afeminada, cheia de trejeitos e acho que isso atraía os pedófilos e homens mais safados que gostavam de ter vida dupla.
Foram várias vezes em que fui abusada na minha infância. Como era mais feminina, eu era estuprada dentro do banheiro da escola com muita frequência e tinha um rapaz que sempre esperava que eu entrar no banheiro, entrava correndo em seguida, me puxava para dentro de uma cabine, me batia e me obrigava a fazer sexo oral nele. Ao finalizar, ele me agredia novamente. Isso era constante.
Certa vez, a professora entrou no banheiro, flagrou aquela cena e chamou minha mãe na escola. Ela, por sua vez, me levou para casa e brigou muito comigo.
Quando me tornei adulta, já no início do processo de transição, eu me passava maquiagem, colocava um boné e me vestia de mulher na rua, longe de casa. O preconceito era muito grande e sempre linchavam qualquer transexual. Certo dia, um homem desconhecido me abordou e apontou um revólver na minha cabeça. Em seguida, ele mandou que eu abaixasse a calça e ameaçou me dar um tiro na cabeça caso eu o sujasse durante o sexo. Eu sentia que ele ia me matar. Para me salvar, eu entrei no jogo dele e fingia que estava gostando da situação, comecei a dar ordens para ele segurar na minha cintura, transar comigo direito e mudei a situação. Ele acreditava que eu estivesse sentindo prazer naquela situação, mas não estava. Quando ele finalizou, me disse:
– Se você contar isso para alguém, eu te mato. Hoje você se livrou.
Saí arrasada dali e nunca mais passei naquele lugar, principalmente de madrugada por medo de encontrar com ele novamente. Muitos anos depois, eu o encontrei novamente dentro do salão da minha mãe. Ele não me reconheceu porque já era uma mulher. Minha mãe me apresentou a ele e falei:
– Ele me conhece.
– Não, não conheço – respondeu ele.
– Você me conhece sim. Só não está se lembrando de mim, mas eu te conheço.
Depois que ele foi embora, eu narrei para minha mãe o que tinha acontecido. Já passei tantos apuros em minha vida que só estou viva pela graça de Deus.
Mudança para São Paulo
Mais tarde, aos 16 anos, eu tinha acabado de chegar a São Paulo, estava sentada em um bar em Guarulhos, região metropolitana da capital, confraternizando alguns com meus amigos que também eram homossexuais. Um homem desconhecido começou a me furar pelas costas até perfurar o pulmão e eu só senti uma ardência muito grande sem saber o que tinha acontecido. Quando caí no chão, vi que ele segurava um punhal e comecei a chutar a perna dele. Levei sete facadas, tomei muito chute na cara a ponto de deformarem meu rosto e todos os meus dentes ficarem moles. Minha boca e meus olhos ficaram deformados.
Mesmo com muita dor, consegui me levantar, quebrei tudo dentro do bar, comecei a correr e caí na esquina desacordada. Não faço ideia de quem tenha me levado para o hospital. Foi uma experiência de quase morte.
Quando abri os olhos, estava deitada em uma maca, no chão, com muita sede e boca seca, fiquei por muito tempo ali chorando, pedindo para que alguém me desse água e um pouco de atenção. Como viram que eu não ia morrer mesmo, resolveram cuidar de mim. Me levaram para um canto e o médico foi muito grosseiro comigo, me maltratava até que eu falei:
– Este é o seu trabalho. Não estou te pedindo nenhum favor!
– Fique em pé para que eu tire um raio-X do seu pulmão.
– Eu não consigo. Estou esfaqueada!
– Então deite aqui – ordenou ele muito ríspido.
Eu finalmente consegui, me virei de bruços e ele viu o buraco nas minhas costas. Ao lado do ferimento, ele fez uma incisão a sangue frio e eu gritava com muita dor. O médico enfiou um cano nas minhas costas sem piedade e eu apaguei. Tenho certeza que ele queria que eu morresse ali.
Esta era uma época que não tínhamos visibilidade e éramos exterminadas, literalmente. Não tínhamos direito à vida e ir e vir. Hoje respeito demais as transexuais que vieram antes de mim e devem até ter passado por situações piores.
Quando voltei para casa, não conseguia comer direito por conta dos meus dentes moles e tomei tudo no canudo por um bom tempo. Fiquei quase um ano presa dentro de casa por medo de colocar o rosto na rua. Fiquei muito traumatizada com o que aconteceu.
Prostituição
Eu nunca quis ir para a rua. Minha mãe arrumou um marido, ele não aceitava meus trejeitos mais femininos e mandou que ela escolhesse entre ele ou a mim. Saí de casa e dormi um dia na rua. Na manhã seguinte, conheci uma travesti que me acolheu. Ela já trabalhava na rua, colocou um lenço na minha cabeça, maquiou o meu rosto e disse ‘comece a trabalhar’.
Com o dinheiro da prostituição, eu consegui alugar a minha casa, refazer a minha vida, me estabilizei financeiramente e não precisei mais dormir nas ruas.
Se eu tivesse a oportunidade de voltar ao passado, não mudaria nada. O meu passado me fez ser a pessoa que sou hoje, me tornou a mulher que sou. Eu só nunca me identifiquei com o meu nome de batismo e não autorizo ninguém a divulgar. Hoje meu nome é Luisa Marilac da Silva, o qual escolhi para mim, desde o dia em que pus a primeira calcinha, me olhei no espelho e vi que eu era uma mulher. Agradeci ao outro que fez parte da minha vida por muito tempo, mas ele já desencarnou. Minha alma é Luísa Marilac. Não existe outro nome.
Aos 19 anos, saí de São Paulo e fui me prostituir na Europa, levada pela mesma cafetina que fez o meu corpo feminino com injeções de silicone. Lá eu fiquei até 2010 fazendo programas e comecei a namorar um cara. Eu saí da Itália para casar com ele que morava na Espanha. Como eu tinha de traduzir meus documentos e não tinha dinheiro para isso, aluguei uma casa, mandava o dinheiro para ele e este cara me roubou tudo. Levou meus documentos e me deixou sem casa.
Passei um dia chorando muito na rua, estava machucada internamente pelo abandono e pela traição, quando uma mulher me encontrou e me alugou uma casa muito bonita. Ela era um anjo para mim, colocou um anúncio no jornal para que eu me prostituísse novamente. Levantei a cabeça e comecei a ver aquela casa que tinha uma piscina na parte superior. Ali gravei um vídeo dizendo ‘ainda disseram que eu estava na pior’. Era uma mensagem para ele porque eu estava em uma péssima situação.
Tempos depois, eu consegui um emprego em um prostíbulo limpando os quartos e atendendo telefones. Nunca gostei desta vida e a primeira oportunidade que tive de conseguir um emprego, fui trabalhar.
Passei por tudo isso, sofri muito mas venci e estou aqui para contar para todos minha vida, minha experiência, minha vitória e superação. Mas acreditem, NÃO FOI NADA FÁCIL!"
Fonte: Marie Claire