Poucos atletas chegaram ao nível do piloto brasileiro. Luz que brilha há décadas, mas também uma sombra em cima daqueles que vieram depois
Ayrton Senna alcançou um patamar que poucos atletas, em nível mundial, conseguiram. Mais que um esportista de sucesso, se tornou um ícone nacional. Sua partida deixou um vácuo jamais preenchido no imaginário popular brasileiro. Imagem tão grande que, inevitavelmente, formou uma sombra. O peso do legado de Senna foi exagerado sobre quem veio depois.
É impossível dar a medida do que foi e o que representou Ayrton Senna em números. Ainda que seus três títulos, 41 vitórias e 65 pole positions sejam significativos, os números de décadas passadas tendem a parecer menores hoje, com olhos acostumados às marcas inflacionadas por temporadas cada vez mais longas e carreiras cada vez mais longevas.
Senna foi muito mais que estatísticas impressionantes. Em uma carreira relativamente curta, o brasileiro galgou níveis rapidamente. Em pouco tempo, passou de um ótimo piloto a um piloto excelente, logo escalou para o posto de gênio até chegar a ser considerado por muitos o maior de todos os tempos em seu esporte.
Perante o público brasileiro, Senna foi revolucionário. A audiência local, que começava a tomar gosto pela Fórmula 1 graças às conquistas e aos talentos de Emerson Fittipaldi e Nelson Piquet, ganhou mais um piloto para torcer. E não demorou até que Senna virasse o queridinho do torcedor. A F1, até então um esporte de nicho, ganhou as massas com Senna puxando o bonde e angariando uma legião incontável de fãs. Um novo hábito nacional foi criado com o sucesso de Senna: juntar a família para assistir e vibrar com corridas de carros.
Mais que uma referência do esporte, ele se tornou um ídolo nacional e internacional. Uma celebridade da primeira prateleira. O mundo via surgir alguém para sentar-se ao lado de caras como Pelé, Muhammad Ali, Michael Jordan e alguns poucos outros no Olimpo dos grandes atletas da história. Sua carreira e sua vida eram observadas com olhos atentos pelos fãs brasileiros.
E, para completar o combo, essa figura que despontava perante o mundo fazia questão de gritar por onde passasse que era brasileiro, com muito orgulho e com muito amor. Sempre carregando a bandeira verde-louro em seus momentos de glória, cunhando frases motivacionais e inspirando uma geração a ir além, buscar o limite, almejar o sucesso, superar obstáculos, perseguir sonhos e manter o foco. Uma cuidadosa e muito bem sucedida construção de imagem que rendeu frutos.
Senna se tornou o pacote completo. Um atleta de exímio talento, dedicação ímpar, sucesso irrefutável, carisma único e que, mesmo com defeitos inerentes a qualquer ser humano, conseguiu construir e manter uma persona pública exemplar, distante de grandes controvérsias e polêmicas (ok, nas pistas houve algumas...).
Basta notar que, 30 anos depois de sua morte, seu legado está sendo exaustivamente rememorado na imprensa. Pense rapidamente em quantas pessoas conseguiriam movimentar a mídia de forma tão intensa 30 anos depois de sua morte. Pois bem, esse é o tamanho de Ayrton Senna.
Um posto vazio
Sua morte no auge da forma, em pleno exercício de sua profissão e perante os olhos do mundo causou um choque digno de alguns poucos fatos históricos que se tenha registro. Um trauma tão grande que qualquer brasileiro com mais de 40 anos é capaz de contar com precisão o que estava fazendo naquela fatídica manhã de 1º de maio de 1994. Trauma esse que não se vai com facilidade – se é que um dia vai.
Eu (jornalista Pery Salgado), que na época tinha outros afazeres além do jornalismo, estava naquela tarde, dentro da minha loja (uma delicatessen e um grande depósito de bebidas na cidade de Maricá no estado do Rio de Janeiro) ouvindo o rádio com a transmissão e literalmente meu mundo desabou com o acontecido. Lembro da tristeza dos clientes que ali estavam, todos saindo para suas casas de cabeças baixas, alguns já chorando.
Aos domingos costumava ficar com a loja aberta at[e às18 horas, mas neste domingo fechei bem mais cedo e fui para frente da televisão ainda torcer para uma possível recuperação do grande ídolo e exemplo nacional, recuperação que fisicamente não veio - nosso mundo parou - mas que espiritualmente me fez crescer muito e acreditar ainda mais na missão que temos aqui quando encarnados em cada existência.
Senna se foi naquele 1º de maio, mas o mundo continuou. E o mundo teve que aprender a continuar sem Senna.
O vazio que ocupou repentinamente o posto de maior referência do esporte brasileiro segue lá, sem preenchimento. É verdade que houveram nomes que brilharam em certos momentos e ocuparam posições de destaque no imaginário popular: Guga, Romário, Ronaldo, Oscar, Hortência, Popó, Cesar Cielo, Rebecca Andrade, Anderson Silva e até Neymar alcançaram os níveis mais altos em seus esportes e uma boa reputação perante o grande público, mas Senna jamais deixou de reluzir como o grande baluarte do esporte brasileiro, ao lado apenas de Pelé.
Inspiração para uma geração
A enorme popularidade alcançada pelo automobilismo no Brasil com o fenômeno Senna fez do esporte um sonho de muito dos meninos que cresceram assistindo corridas domingo sim-domingo não. Não foram poucos aqueles que puderam se arriscar no incrível mundo das corridas de carros e conseguiram progredir na carreira.
O Brasil passou a formar pilotos em quantidade e com qualidade – ainda que suas carreiras maturassem no exterior. A sequência de sucessos iniciada com Emerson, elevada por Piquet e alçada a outra dimensão por Senna aumentou exponencialmente a reputação do piloto brasileiro. “O que há na água do Brasil?”, se preguntavam os europeus e americanos, com a enxurrada de brazucas correndo (e vencendo) na porção norte do globo. Piloto brasileiro virou grife.
A grande exposição do automobilismo no Brasil naqueles tempos facilitava a busca por patrocínios, que abriam portas aos jovens talentos brasileiros ao redor do mundo. Entre o tricampeonato de Senna, em 1991, até os 10 anos seguintes à sua morte, nada menos que 11 pilotos brasileiros chegaram à F1. Outra dezena alcançou a CART/IRL, nos EUA.
A grande sombra
Acontece que, por mais que todos esses sejam bons pilotos, com virtudes e competência, nenhum deles é Ayrton Senna. E isso, perante os olhos de boa parte da opinião pública brasileira, era um problema. Senna se foi sem aviso e sem preparar um substituto. Para muita gente, o vazio por ele deixado precisava ser preenchido por outro piloto. E esse peso caiu de forma mais cruel em cima dos dois nomes de maior sucesso da geração seguinte.
O tempo mostrou que uma parte considerável do novo público que se formou durante a era Senna não gostava, de fato, de assistir e entender a Fórmula 1. O interesse e o prazer estavam em ver um brasileiro ganhar. Em partes, pode-se creditar esse costume à forma como se dava parte importante da cobertura na época, que, por um lado, ajudou a projetar e exaltar a imagem vencedora de Senna, e, por outro, “ensinou” o público que apenas a vitória do brasileiro importava, suprimindo as várias camadas e complexidades do esporte.
Rubens Barrichello chegou a dividir as pistas com Senna quando ainda iniciava sua trajetória na F1. Com a partida de seu ídolo, coube a ele a missão (e o peso) de carregar o legado do Brasil nas pistas. Na ótica de grande parte do público, ele deveria vencer, e rápido. O fato de o então garoto Rubinho pilotar uma simples Jordan nos anos seguintes, depois uma também modesta Stewart, não importava. Vencer era obrigação. Quando chegou a uma equipe de ponta, a cobrança subiu ainda mais de tom, sem se importar que ao seu lado estaria o piloto que reconstruiu a Ferrari e para quem a equipe, assumidamente, trabalharia.
Felipe Massa chegou mais rápido à Ferrari, e também não demorou a ser cobrado por títulos e vitórias. Assim com Rubinho, ou vencia, ou seria taxado de “roda presa” por esse público pautado pelo tudo ou nada.
Ambos construíram carreiras vitoriosas na categoria, com 11 vitórias cada, dois vices de Rubinho e um de Massa. São marcas que os colocam entre os grandes de suas gerações. Barrichello chegou a carregar por anos o recorde de mais corridas na história da F1, o que só atesta seu valor enquanto piloto.
A imagem de Senna, grande demais no imaginário popular, fazia uma sombra enorme sobre aqueles que chegavam à Fórmula 1. Barrichello e Massa tiveram suas luzes, em partes, ofuscadas por essa sombra.
Faça-se luz!
A cobrança por um “novo Senna” colocou uma pressão desnecessária e desmedida sobre pilotos de toda uma geração que veio no embalo do ídolo, enquanto o país buscava desesperadamente por alguém para ocupar seu lugar de grande referência.
É claro que categorias de base bem estruturadas, patrocínios e equipes dispostos a apoiar, preparação física, técnica e mental são fundamentais na formação de pilotos e de atletas de qualquer esporte. Mas a dura verdade é só uma: jamais haverá outro Ayrton Senna.
A combinação única de altas doses de talento raro, foco, motivação, dedicação, garra, ambição, carisma e inspiração não pode ser ensinada. É o dom que, quem tem, tem de nascença. Senna nasceu com o pacote completo. Uma máquina de pilotar. Um raio que só cai uma vez.
30 anos depois de sua morte, sua imagem segue inabalável e incontestada como a do grande ídolo do esporte brasileiro dos últimos 50 anos - e nada indica uma mudança nesse cenário. Cabe a nós mantermos seu legado vivo, respeitando aquele que foi e ainda é uma referência e entendendo que ninguém pode ser cobrado com um sarrafo tão alto. Há espaço para que todos que venham construam seus nomes e deixem suas marcas, com trabalho, competência e paixão. Sem comparações.
Quantos aos dois citados no texto, é reconfortante ver o reconhecimento e o carinho que o público tem demonstrado com ambos por onde passam com a Stock Car. Que bom que Barrichello e Massa puderam voltar a correr no Brasil e concluir suas carreiras próximos ao público local, confirmando aquilo que sempre mostraram pelo mundo: são grandes!
Com um distanciamento maior desde a fatídica morte de Senna, sua imagem é alçada cada vez mais às alturas, mais próxima aos Deuses do esporte. De lá, sua sombra vai se tornando menor para os meros mortais. Que haja luz para os que chegam, sob os olhos e à benção do grande Ayrton Senna!